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Temos dados de aumento da prevalência (pessoas acometidas) de TEA ao longo das últimas décadas. Muitas teorias vêm sendo rigorosamente estudadas para explicar tal fenômeno.
Fato é que temos mais acesso a informações do que em qualquer outro momento da história. Fato é que famílias e profissionais que cuidam da primeira infância (educadores, profissionais da saúde) em geral estão mais atentos aos marcos do desenvolvimento, sendo capazes de observar e direcionar suspeitas de atrasos.
Isso faz com que casos mais evidentes de TEA, cujos sinais são muito claros, sejam diagnosticados com mais facilidade. Nesse caso, o meu papel passa a ser o cuidado dessa criança e dessa família, transmitindo progressivamente as observações sobre os sinais e sintomas, desenhando uma linha de intervenção junto com a equipe multiprofissional e a área da educação, eventualmente trazendo a opção de tratamento farmacológico para sintomas mais impactantes, como agressividade.
Porém, o que vem acontecendo mais recentemente, fortemente acelerado pelos anos de pandemia, é a chegada de inúmeros casos com “suspeita” de TEA. Crianças com discretos atrasos em comunicação e linguagem, com dificuldades em interações sociais, crianças com alguns comportamentos “difíceis”, mais inflexíveis e intolerantes, muito agitadas, crianças com déficits em integração sensorial (escreverei mais sobre isso em outro momento). Atender essas famílias tem sido desafiador, tem me feito buscar mais fontes de conhecimento (cursos, supervisões, atendimentos compartilhados), tem me feito investir horas em discussões de caso com profissionais como fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, psicólogos, neuropsicólogos, pedagogos. Muitas vezes chegamos juntos à confirmação do diagnóstico que, se por um lado traz alívio (“ok, agora sabemos por onde seguir”), por outro lado traz a angústia de como lidar com a “absorção” desse diagnóstico junto às famílias. Outras vezes não chegamos a uma definição, o que nos faz acompanhar de perto a evolução dessa criança investindo em estratégias que promovam seu melhor desenvolvimento. Faz parte do trabalho com a infância lidar com as incertezas.
Ainda dentro do TEA, não posso me furtar a falar sobre o fenômeno disparado pelas redes sociais da “neurodivergência”.
Se por um lado temos a maior parte da população carente de acesso à serviços de saúde de qualidade, levando ao subdiagnóstico da grande maioria dos transtornos mentais, incluindo os transtornos do neurodesenvolvimento, por outro lado temos uma massa de adolescentes, adultos jovens e adultos se identificando com sinais e sintomas compartilhados de forma leviana em redes sociais.
Sim, é verdade, muitos adultos que passaram uma vida (principalmente infância e adolescência) sendo negligenciados em suas dificuldades e desadaptações, ao entrarem em contato com as informações identificaram uma série de comportamentos e padrões de funcionamento similares aos seus. A partir disso puderam buscar profissionais qualificados e finalmente encontraram respostas para sua identidade, inclusive podendo buscar estratégias terapêuticas adequadas. O diagnóstico pode e deve ser libertador.
Porém um diagnóstico superficial baseado em checklists pode ser uma “resposta simplória para um problema complexo”. Muitas histórias de vida marcadas por dificuldades sociais, sofrimentos, rupturas de vínculos afetivos, dificuldades de encarar os dilemas da vida adulta estão sendo incorretamente embalados com o nome de Autismo. Posso afirmar que a construção de um diagnóstico de TEA na vida adulta é complexo e leva tempo, pois se não foi diagnosticado antes é possível que os sinais tenham sido menos evidentes desde o princípio, que muitos sinais estejam mascarados por anos de estratégias de adaptação e que os dados sobre infância sejam pouco acessíveis.
“Dai a César o que é de César”.
Podemos a princípio identificar um funcionamento com falhas em habilidades sociais (dificuldade em fazer amizades ou ter relacionamentos afetivos, em se entrosar numa roda social, em manter conversas frívolas, em sustentar contato visual durante uma conversa, em compreender piadas, sarcasmos, ter um tom de voz mais monótono, um vocabulário mais rebuscado etc.), eventualmente apresentando momentos de esgotamento diante de demandas sociais; um padrão de comportamentos rígidos e repetitivos (tendência à mesmice, dificuldade com mudanças de rotina, ansiedade diante de situações imprevisíveis, perfil mais sistemático, metódico, apego excessivo à regras); uma maior sensibilidade sensorial (incômodo com barulhos, com toque, com determinados tipos de roupas, até uma seletividade alimentar). Se a pessoa preencher todos os “checks” para as listas de sintomas, ela terá o diagnóstico de TEA? Não! Para a investigação diagnóstica, faremos certamente mais de uma consulta, abordando tanto o padrão de funcionamento atual e as dificuldades enfrentadas, quanto toda a história de vida, lembrando que os sinais do TEA precisam estar presentes, mesmo que em graus variados, desde a primeira infância. Para isso será primordial a conversa com familiares, acesso a vídeos/fotos, relatos escolares. Além disso, é fundamental a avaliação diagnóstica multidisciplinar, com psicólogos (em geral neuropsicologia), com terapeutas ocupacionais e com fonoaudiólogos. Quando enfim chegamos a uma conclusão diagnóstica, precisamos entender que função isso terá na vida daquela pessoa, qual será o impacto na sua individualidade e como cuidar das dificuldades a partir de então. E se não for TEA? Em geral os principais diagnósticos diferenciais são os transtornos de personalidade (obsessivo-compulsivo, evitativo, esquizóide, esquizotípico), a fobia social, os transtornos de linguagem, a esquizofrenia com predomínio de sintomas negativos, quadros de humor graves e prolongados desde a infância/adolescência, ressaltando que pode ocorrer a sobreposição de diagnósticos (as comorbidades).
Nos últimos anos tenho percebido maior resistência das pessoas que buscam o diagnóstico de TEA e não encontram, como se estivessem sendo invalidadas. A mim parece que isso só tem cabimento diante do fenômeno instantâneo da “glamourização” cultural de um diagnóstico, que logo cairá no esquecimento (provavelmente dando lugar para outro rótulo momentâneo). O que me preocupa é a grande fragilidade e dificuldade de encarar os problemas com o nome que lhes cabe. O que me preocupa são as diversas famílias que lidam e lutam cotidianamente pela dignidade, reconhecimento e pertencimento das pessoas que de fato são autistas.
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