Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)

(…) Todo mundo precisa de uma razão para seguir em frente – falou o cavalo. 
– Qual a sua? 
– Vocês três – respondeu a raposa. 
– Voltar para casa – disse o menino. 
– Bolo – acrescentou a toupeira. (…)

É comum em rodas de conversas que envolvem pais e educadores, pessoas que lidam cotidianamente com crianças, ouvirmos críticas ao excesso de diagnóstico de TDAH levando consequentemente à medicalização da infância. É como se todos os problemas comportamentais pudessem ser encaixotados sob um nome (o diagnóstico de um transtorno) e então pudessem ser resolvidos com uma medicação (a famosa Ritalina). Tal raciocínio também se aplicaria a um outro diagnóstico que nos últimos tempos se tornou tão famoso quanto, o Transtorno Desafiador Opositor (TOD).
Se eu concordo com essa ideia? Em partes.

Temos um estilo de vida acelerado, crianças com agendas lotadas, altas exigências de performance cognitiva (leia-se boas notas), excesso de exposição a informações, excesso de uso de telas, rotinas de sono inconsistentes (crianças e adolescentes dormindo menos horas que o necessário). Somam-se adultos sobrecarregados e pouco disponíveis para tempo de qualidade com seus filhos. No centro da “polêmica” está o questionável formato do nosso modelo educacional e o que esperamos das crianças e dos adolescentes. Tudo isso profundamente agravado pela pandemia. De fato, esse cenário poderia gerar queixas que se assemelham ao diagnóstico de TDAH, como dificuldade de manter foco e concentração, procrastinação, desorganização, dificuldade de permanecer quieto e esperar sua vez etc. A percepção de que todas essas variáveis interferem no desenvolvimento de uma criança e que, fundamentalmente, precisamos arregaçar as mangas para colocar mudanças em prática é um enorme desafio tanto individual (de cada família) quanto coletivo (afinal, “é preciso uma aldeia inteira”). Muitas vezes não conseguimos alcançar todo esse cenário e, diante disso, vejo sim algumas famílias e algumas escolas buscando imputar o “problema” na criança. Mas mais do que isso, vejo famílias e escolas fazendo malabarismos tentando buscar equilíbrio na direção de uma infância saudável. Quando uma criança é cercada por um cuidado genuíno e encontra profissionais qualificados, que farão uma avaliação criteriosa, é improvável que seja feito um diagnóstico incorreto, é improvável que uma criança seja medicalizada.

Então, o TDAH existe? Sim, posso afirmar com toda a certeza, baseada em um literatura científica muito bem consolidada, que o TDAH existe em crianças, adolescentes e adultos. A prevalência na infância e na adolescência é de 5.4%, sendo um dos transtornos mais comuns da faixa etária. Quando corretamente diagnosticadas e tratadas, as crianças evoluem de uma forma satisfatória, dentro do seu potencial, num desenvolvimento saudável, prevenindo uma gama de desfechos negativos ao longo de sua trajetória. Infelizmente a maioria das pessoas com TDAH ainda não são diagnosticadas e passam anos e anos enfrentando dificuldades – sejam acadêmicas, comportamentais ou relacionais. O medo, o preconceito e os tabus que envolvem saúde mental na infância, a falta de informação, a falta de acesso a serviços de saúde especializados ou até mesmo a apresentação do TDAH com predomínio de sintomas atencionais, que são menos evidentes, podem contribuir para a dificuldade de chegar a um diagnóstico e um cuidado adequados.

Gostaria de trazer algumas reflexões sobre TDAH na vida adulta. Até a pouco tempo acreditávamos que seria uma condição exclusiva da infância e que o amadurecimento cerebral ao longo dos anos levaria a uma resolução dos sintomas. Hoje sabemos que os sinais não só podem persistir na vida adulta, ainda que com características diferentes, como alguns estudos sinalizam a possibilidade do surgimento dos sinais na vida adulta. Trazendo alguns dados: cerca de 40-50% daqueles que tinham o diagnóstico na infância deixam de ter os sinais na vida adulta e 50-60% persistem com o diagnóstico. A prevalência entre 18 e 44 anos é de 2.5-2.8%, sendo que menos de 15% recebem diagnóstico e tratamento adequados.

A apresentação do TDAH na vida adulta é diferente daquela que observamos na infância, em geral com menos sintomas de hiperatividade/impulsividade e um predomínio de sintomas atencionais. Porém a dificuldade atencional não é necessariamente permanecer focado numa tarefa, é principalmente “saber o que fazer” com a atenção. Um adulto com TDAH pode ficar horas imerso numa atividade motivadora – o famoso “hiperfoco” – e ao mesmo tempo pode ter muita dificuldade de prestar atenção em detalhes do dia a dia, esquecer um compromisso, atrasar boletos, procrastinar uma demanda profissional, se perder numa conversa ou em uma reunião importante.

Para compreender melhor os sinais da vida adulta, deixo esse material complementar Clique Aqui. Escrevi esse material sobre TDAH na vida adulta em 2022, num formato voltado para médicos, mas com linguagem acessível; é um compilado de informações retiradas dos principais artigos científicos recentemente publicados.

ALERTA PARA REFLEXÃO!

O que vem acontecendo nos últimos anos, novamente acelerado pela pandemia e pela fama da “neurodivergência” nas redes sociais é que toda e qualquer queixa cognitiva (“eu não consigo permanecer concentrado, eu demoro muito para terminar o que preciso, eu procrastino tarefas importantes, eu ando esquecido, eu sou desorganizado” etc) somadas ou não a desregulações emocionais (como a impulsividade) estão sendo chamadas de TDAH. As pessoas chegam à consulta com uma listagem de sintomas acreditando terem encontrado a resposta para seus problemas. Tais listas na maioria das vezes são recortadas de sites de busca ou fonte de relatos de algum influenciador digital. Muito chegam já tendo realizado testes, sejam questionários auto aplicados ou mesmo avaliações psicológicas, sem que tenha sido feita uma criteriosa avaliação clínica. Com isso vem a busca de medicação para a resolução das queixas.

Os psicoestimulantes (Ritalina, Concerta, Venvanse) comumente são usados sem avaliação e prescrição médica, sendo inclusive motivos de piadas dentro de alguns ambientes de estudos ou profissionais. Tem sido um grande desafio lidar com esse apelo, com essa expectativa.

Adultos sofreram um forte impacto da pandemia no seu funcionamento global. Alguns manifestaram sequelas como dificuldades de memória e concentração decorrentes da infecção pelo Covid. Mas o pesado mesmo é que todos tiveram dificuldades como consequência da adaptação a um novo momento de vida, como a perda de atividades prazerosas e encontros sociais, como trabalho remoto e ter que ficar em casa, muitas vezes num único cômodo, sentado o dia todo diante de uma tela, lidando com novas demandas, com diversas preocupações – saúde, finanças, desemprego, estrutura familiar etc. Muitos jovens fizeram o ensino médio ou boa parte de suas graduações no formato online, outros jovens entraram no mercado de trabalho sem experiência prévia do que seria um fluxo de trabalho.

Mesmo que pudéssemos ignorar o evento pandemia, já vínhamos lidando com jovens menos tolerantes a frustrações e erros, com menos recursos para lidar com adversidades e conflitos, com perfil de busca por satisfações imediatas. Sem contar que a pressão de performance profissional nos grandes centros urbanos ultrapassa qualquer limite do saudável, muitas vezes ultrapassando o limite do “humanamente viável”.

Precisamos lembrar que o funcionamento do nosso cérebro custa caro! Para que nossas capacidades intelectuais e emocionais estejam em pleno funcionamento, precisamos dormir um sono de qualidade por horas suficientes, nos alimentar de forma equilibrada, colocar nosso corpo em movimento, reservarmos tempo para o ócio, para o lazer e para as conexões afetivas. Ainda assim, habilidades como atenção concentrada e controle inibitório (a capacidade de adiar gratificação) não são inatas, elas exigem treinamento e disciplina. Quer um exemplo? É mais fácil ficar 3-4 horas diante de uma planilha analisando dados ou ficar 3-4h diante da barra de rolagem infinita de um aplicativo? É muito fácil nossa atenção ser drenada por diversas distrações e é muito fácil ceder a um desejo imediato, o que fazer com isso precisa ser uma escolha pensada e disciplinada.

Daqui desse lado seria mais fácil empacotar todas as queixas sob o nome do TDAH e prescrever uma pílula mágica da performance. Mas seguimos com o rigor da ética, da ciência, do humanamente saudável e possível, buscando o equilíbrio.

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