“
(…) – Não é esquisito?
Só podemos nos ver por fora,
Mas quase tudo acontece do lado de dentro. (…)
”
Só quem tem TOC conhece o tamanho do sofrimento que mora do lado de dentro. É um transtorno silencioso. Tem um tempo de atraso diagnóstico em torno de 8-10 anos. Significa que desde o surgimento dos primeiros sinais até a identificação correta do quadro passaram-se 10 anos de estranhezas e angústias.
Muitos dos quadros têm início na infância. A depender da natureza dos sintomas, tanto as crianças quanto os adultos ao redor vão tendendo a naturalizar os comportamentos. Por exemplo, nas compulsões de simetria e ordenação a criança passa a ser metódica e sistemática, deixando roupas organizadas por cores, canetinhas alinhadas em cima da mesa, caderno sem rasuras (a ponto de precisar reescrever a mesma página dezenas de vezes até “acertar”), o que pode ser bem-visto pelos adultos. Algumas crianças passam a lavar a mão repetidas vezes, mesmo já estando limpas ou já tendo lavado imediatamente antes por pelo menos 3-4 vezes. Outras criam uma série de sequências para rotinas do dia a dia, como para tomar banho (lavar 5x o braço direito, depois 5x o esquerdo, se errar começa tudo de novo) ou ao chegar em casa ( só depois de fechar o portão da frente da casa é que alguém pode colocar a chave no trinco da porta). Já ouvi muitas frases como “é o jeitinho dela”. Sempre que algo foge ao esperado (mudar a sequência, ser impedido de lavar a mão ou alguém “bagunçar” seu material) a criança entra num estado intenso de sofrimento, choro, angústia, chegando até a comportamentos mais desorganizados, com acessos de raiva. Isso faz com que muitas vezes as famílias acabem entrando nos rituais, para evitar o desconforto.
Lembro de uma menina que atendi pela primeira vez aos 12 anos. Ela tinha muita resistência a conversar com alguém sobre o acontecia, mesmo que os pais já estivessem cientes do problema. Desde os 7-8 anos ela não podia ter qualquer contato com frutas. No começo ela parou de comer frutas, depois não podia encostar em frutas, depois ela não podia entrar em ambientes com frutas (deixou de entrar na cozinha de casa, conferia se a mãe tinha lavado a mão depois de manipular frutas), chegando ao ponto de não mais fazer refeições no refeitório da escola, pois não podia encostar numa mesa que eventualmente tivesse tido contato com frutas. Ela sabia que isso era bizarro e sem lógica, mas não conseguia controlar. Tinha vergonha e não queria que ninguém descobrisse. Foram meses de psicoeducação para esclarecer que ela não precisava viver com aquilo e que não era motivo algum para se envergonhar.
Não vou discorrer sobre obsessões e compulsões, mas gostaria de ressaltar que na infância o acesso às obsessões é mais difícil. As crianças têm menos clareza dos pensamentos obsessivos, com menos capacidade de nomear e verbalizar o que passa pelo campo das ideias. Como o pico de início dos sintomas é por volta dos 7-8 anos, justamente a fase em que as crianças mergulham no mundo das fantasias, os pensamentos obsessivos podem ser de conteúdos bastante “estranhos”, com medos bizarros, pensamentos mágicos, monstros etc. Outra forma de obsessão são os fenômenos sensoriais, que são sensações corporais ou mentais (diferente de um pensamento) estranhas que levam à urgência de executar uma compulsão para trazer sensação de alívio. Em geral, na infância o que tende a predominar são os comportamentos compulsivos, os famosos rituais.
Atendi uma menina de 6 anos que passava mais de 2h tentando colocar roupa para ir para a escola. Ela e a mãe já estavam acordando às 5h para dar tempo de se arrumar e eram horas de muito estresse para ambas, pois nada convencia a menina a se vestir. Chegava a entrar no elevador coberta por um lençol, chorando, para que na porta da escola a professora ajudasse a convencê-la. A família vinha entendendo como um comportamento opositor, por ser uma menina “geniosa” e agitada. Quando durante uma longa anamnese, com investigação dos detalhes, fomos esclarecendo o que acontecia, descobrimos alguns outros rituais e finalmente compreendemos que havia um fenômeno sensorial de “just right” que a impedia de conseguir colocar a roupa de um jeito confortável. À princípio não havia nem obsessão nem compulsão evidentes, mas sim, era TOC e ela ficou muito bem com o tratamento adequado.
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Os adultos, apesar da maior clareza sobre os pensamentos obsessivos e o impacto dos comportamentos compulsivos, também demoram procurar ajuda e “toleram” os sintomas, até pelo perfil oscilante dos sintomas ao longo dos anos. É verdade que mesmo com tratamento adequado muitas vezes não atingimos a remissão completa dos sintomas. Mas é possível trazer muita qualidade de vida com o cuidado adequado.
Recordo de uma jovem que comecei a atender quando estava com 19 anos. Ela tinha obsessões de conteúdo sexual com familiares, o que a afastou do convívio de pessoas que amava. No começo teve resistência ao uso de medicação, mas estava tão “desesperada” que aceitou. Depois de um tempo de melhora, decidiu interromper a medicação por causa dos efeitos colaterais. Por muitos anos fez tratamento irregular, convivendo de uma forma muito disfuncional com os sintomas, até que com 26 anos voltou com uma depressão grave. Nesse momento aceitou o tratamento e depois de alguns meses ela me perguntou “Eu estou tão bem, essa sou eu mesma?”.
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